HISTÓRIAS DE UM TATUADOR

HISTÓRIAS DE UM TATUADOR

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O Palhacinho

Muitas vezes já me peguei tentando imaginar o que se passa nas cabeças das outras pessoas.

Acredito plenamente que, quando não ocupamos a mente, acabamos inventando coisas que até Deus duvida!

No meu ramo de atividade eu encontro muitos exemplos de pessoas que devem ficar em casa com a cabeça desocupada e imaginando um monte de loucuras para desenhar no corpo, isto é, tatuagens malucas...

É certo que, em torno de 90% das tatuagens que já fiz são normais e os outros 10%, obviamente, são os maiores devaneios possíveis.

Este episódio foi mais uma das ocasiões onde eu tentei de todas as formas entender o que acontecia, mas, para variar, acabei desistindo e me conformei...

Uma mulher me telefonou uma vez querendo marcar um horário para conhecer o estúdio, olhar alguns desenhos, o de praxe. Disse também que traria sua filha, a qual também tinha interesse em fazer uma tatuagem. Até aí, tudo normal... Mas só até aí...

No dia e na hora combinada lá estava eu esperando por mãe e filha. Preparei as coisas e já fiquei alerta, caso alguma delas quisesse tatuar naquele dia mesmo.

Finalmente a campainha tocou. Atendi a porta achando que se tratava das duas mulheres as quais eu esperava, mas não eram... Era um rapaz. Nunca o vi na vida. Queria conhecer o estúdio e ver alguns desenhos... O rapaz entrou e sentou-se... Neste instante a campainha tocou novamente. Liguei a tv e pedi que o tal rapaz aguardasse um momento. Atrasadas, eis que chegam as duas. Ou melhor, as três...

Não entendi ao ver entrando as três mulheres, afinal, pelo que eu sabia, viriam apenas duas. Uma delas aparentava ter em torno de dezoito anos. Tinha cabelos longos e castanhos, olhos da mesma cor e pele extremamente branca. Vestia roupas jovens: mini-saia, blusinha, tênis... Essas coisas.

A outra já aparentava ter seus quarenta e poucos anos. Seus cabelos alcançavam os ombros e eram nitidamente tingidos de loiro. Olhava tudo com desconfiança. Parecia estar com medo de alguma coisa.

A terceira era uma senhora. Tinha já seus cabelos brancos, ou melhor, roxos (não sei como as velhinhas conseguem ficar com os cabelos daquela cor)! Usava um vestido florido no mesmo tom do cabelo e tinha uma maquiagem bastante carregada.

Fiquei confuso, afinal, qual delas teria me ligado? Quem era a mãe que dissera que traria a filha? Quem era a filha? Quem era a mãe?

Sentaram-se e passaram a olhar as pastas de desenhos.

Quase não falavam, e quando o faziam, era num tom tão baixo que pareciam estar rezando. E eu ali, sentado, sem graça, observando...

A mais nova demonstrava muito interesse nos desenhos que via, enquanto a velhinha apenas passava os olhos pelas pastas. Resolvi então ligar o rádio para quebrar um pouco o silêncio quando ouvi uma delas falar:

“—Olha mãe! Olha mãe! O “Churcky”! O Fernandinho ia adorar esse desenho do “Churcky”! Se ele estivesse aqui garanto que ele ia querer tatuar o “Churcky”!” – era a do meio, ou melhor, nem a menina, nem a velha, gritando sobre o tal “Churcky”... Mas que raios seria o “Churcky”?

Rapidamente, a mulher se levantou e foi ver quanto custava o tal desenho. Neste momento pude ver que o “Churcky” era o “Chucky, o Brinquedo Assassino”! A letra “r” que ela colocou no meio do nome do personagem ficava por conta dela, e quem seria eu para corrigi-la...

A mulher voltou para o sofá e ali ficaram por mais uns vinte minutos, observando as pastas. Fiquei tentando imaginar quem faria a tatuagem e qual desenho seria. Provavelmente a garota mais nova faria uma tatuagem pequena e delicada. Já a mulher poderia fazer algo que há tempos tinha vontade de fazer e a velha só estava acompanhando as duas. Pelo menos eu já sabia que a senhora era mãe da mulher e só faltava descobrir se a garota também era da família...

Logo, a velha permaneceu sentada enquanto as outras duas me enchiam de perguntas. Aquelas perguntas que quase nunca escuto: “Tatuagem dói? Onde dói mais? É verdade aquela história que tem que ter três tatuagens? Quantas tatuagens você tem? Você vai vendar sua pele para os japoneses? O que é isso aí que você tem no braço? E na perna? Sua mãe não fala nada? E seu pai? O que as pessoas geralmente fazem? Em qual local? Você é de alguma gangue? Mas e se você se arrepender? E para arrumar trabalho depois? É verdade que a tinta vermelha dói mais? É verdade que não pode comer ovo depois que tatua? E carne de porco? Quanto tempo tenho que ficar sem ir para a praia? Tem que passar bronzeador? Você que se tatuou? Quem fez suas tatuagens? Qual a tatuagem mais maluca que você já fez? E o local mais estranho que você tatuou? Você vai me dar um desconto?” E muitas outras perguntas que devo ter respondido milhares de vezes em toda a minha vida...

Depois do interrogatório, perguntaram sobre os desenhos que haviam escolhido, mas disseram que não fariam naquele dia. A velha permanecia calada. Nessas alturas eu já havia escutado a garota chamar a senhora de avó, então, finalmente, vi que se tratava de mãe, filha e neta.

“—Amei o “Churcky”! O Fernandinho vai amar o “Churcky”! Ele adorou todos os filmes do “Churcky”, principalmente aquele... Como é o nome mesmo? Ah, já sei! “A Esposa do Churcky”!” – continuava gritando a mulher sobre o “Chucky”, mesmo sem saber que o nome do filme em questão era “A Noiva do Chucky” e não a esposa...

Você deve estar se perguntando: “Por que será que esta história se chama O Palhacinho”? Calma... Calma... Eu chego lá...

Passada toda essa ladainha, as mulheres resolveram ir embora. Pegaram suas bolsas, despediram-se, agradeceram e foram. Mas havia um porém: a velha ficou! Depois que as duas saíram, a velha se aproximou e disse:

“—Meu rapaz... Eu gostaria muito de fazer uma maquiagem definitiva! Não sei se você faz, mas queria fazer o contorno dos meus lábios e refazer minha sobrancelha... Você faz?”

Fiquei muito surpreso ao ver que a única que realmente faria a tatuagem seria a velhinha! Disse a ela que faria sim o que ela havia me pedido e logo combinamos o preço. Ela pagou adiantado (coisa rara) e fomos para a sala de tatuagens.

Preparei o material e comecei pelo contorno dos lábios. Minha primeira e complicada tarefa: depilar o buço da senhora! E olha que era um buço de respeito! Tinha mais bigode que eu... Quando a velha viu que eu rasparia seu bigode, ela disse:

“—Meu rapaz... Ainda bem que ontem mesmo eu me depilei todinha! Todinha mesmo...”

Ao ouvir aquilo, fiquei imaginando um monte de coisas que não quero nunca mais imaginar na minha vida.

Não questionei o fato do buço estar extremamente peludo, mesmo a velhinha afirmando que havia sido depilada... Será que aquele baita bigode havia crescido do dia para a noite? Imaginei se ela não tivesse sido depilada! O buço estaria igual ao de um português dono de padaria...

Foi um custo raspar aquilo... Mas vamos esquecer o buço.

Quando eu disse que as pessoas não têm mais o que inventar, eu me referia a cor que a velhinha escolheu para contornar os lábios: vermelho! Ela já tinha lá os seus sessenta anos e a boca já não era mais a mesma... Sabe como é boca de velha... Posso lhe garantir que foi muito difícil esticar aquela boca e contorna-la de vermelho!

O pior é que a boca era tão sensível e enrugada que logo inchou... Mas inchou bastante! O melhor estava por vir...

Raspei o que restava da sobrancelha antiga da velha e desenhei, com uma caneta adequada, outra no lugar... Certinha... Linda... Exatamente como deveria ser! Pedi para que a senhora olhasse no espelho antes que eu começasse a tatuar, foi quando ela disse:

“—Ficou muito bom, meu rapaz! Adorei o tamanho, o formato... Mas só queria que mudasse uma coisa: queria que você a fizesse mais para cima! Mais pra cima, por favor...”

Eu havia desenhado a sobrancelha no local exato onde deve se ficar uma sobrancelha, mas a velha queria que eu deslocasse o desenho mais para cima! Queria que eu desenhasse um par de sobrancelhas no meio de sua testa!

Ainda tentei fazer a senhora mudar de idéia, mas, foi em vão... Desenhei as sobrancelhas novamente bem no meio da sua testa e ela amou:

“—Agora sim! Agora sim! É aí que quero as minhas sobrancelhas! Agora ficaram perfeitas! Pode tatuar!”

Era óbvio até para um leigo que as sobrancelhas não estavam no local correto. Mesmo assim, respirei fundo, coloquei as luvas e a máscara e iniciei o trabalho...

Durante a tatuagem, os lábios da velhinha inchavam cada vez mais a ponto de dobrar de tamanho! Pedi para que ela não movimentasse muito a boca, mas ela não me obedeceu...

Depois de vinte minutos de trabalho eis que estavam prontas as sobrancelhas da velha. Para piorar, ela pediu para que eu fizesse sobrancelhas marrons! A pele do rosto é muito sensível... Imagine de uma velhinha! É claro que logo as sobrancelhas marrons também incharam, fazendo parecer que a velha havia sido picada por um inseto bem na testa!

A senhora levantou-se e foi até o espelho ver o resultado do trabalho:

“—Amei! Amei! Ficaram exatamente como imaginei! Tanto a boca quanto às sobrancelhas ficaram lindas!” – exaltava-se a velha, sem saber o real resultado do trabalho.

Sei que sou suspeito para falar, mas a técnica e o resultado do trabalho ficaram perfeitos. Mas imagine uma velha de cabelos roxos, vestido roxo, boca inchada vermelha e sobrancelhas marrons bem no meio da testa! Parecia que ela estava constantemente de olhos arregalados e fazendo “biquinho”...

Confesso que tive que me conter para não rir. Tive que manter o profissionalismo a qualquer custo. Pena que não tinha filme na minha máquina fotográfica para registrar o momento (naquela época ainda se usava máquinas fotográficas com “filme”)...

Agora você já deve saber por que este capítulo se chama “O Palhacinho”... Velha, enrugada, cabelos e vestido roxo, boca grande e bem vermelha, olhos arregalados, sobrancelhas marrons no meio da testa... Era um verdadeiro palhacinho!

Só faltou o nariz vermelho...

Viu só como as pessoas inventam?

Ah! Esqueci do rapaz!

Acredite se quiser... Ele ficou o tempo todo sentado, assistindo tv, ouvindo e vendo tudo o que aconteceu! Entrou mudo e saiu calado...

Não viu desenho nenhum, não conheceu o estúdio, enfim, só assistiu tv! Quando me dei conta, ele já estava até com o controle-remoto na mão!

Ao final de toda a história, ele se levantou, agradeceu, soltou o controle, e foi embora... Depois de ter passado um tempão assistindo tv no meu estúdio...

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